Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de maio, 2020

A cadela Laica

A minha mãe queria-me menina. Estou certo disso. Não enquanto viveu que se me tivesse confessado mas adivinhei-lhe sempre pela forma como me pegava ao colo, me mantinha o cabelo e pelo enxoval que teimava em me estrear novo. Mais mês, menos coisa, comecei a ficar sofrido e reclamei calções. Olha para ti com essas pernas tão magras que parecem uns canivetes. Conheci-lhe esta forma de modular as coisas. Deixava-me desequilibrado aos bons e maus conselhos da consciência esforçando-se por os dividir a seu favor. Os canivetes e a teimosia castigaram-me em óleo fígado de bacalhau vertido numa colher de sopa diária. Em frascos verde escuro, altos, rectangulares, sem qualquer sabor disfarçado e de uma intensidade que ainda hoje trago no olfacto. Aprendi a fugir-lhes para a loja dos vizinhos recuperando-me no cheiro da infusão de ervas e na meiguice daquele bichon maltês.  A sapataria onde me refugiava era logo ali a um braço esquerdo da minha porta e a paredes meias com outra do mesmo expedien

A Praínha

Os registos das minhas memórias declarativas são, quase sempre, aquelas que consigo reconstruir a partir de sentimentos. Lembro-me daquela enseada, a que chamávamos praínha, com o mar à frente e uma muralha de rochas atrás onde passei tempos perdidos a lançar o disco para o céu na esperança que regressasse o mais próximo possível sem tirar os pés do mesmo sitio. Quem também passava tempos infinitos a olhar para o céu era o meu pai. Para um céu diferente do meu, onde o disco er a substituído por uma ponteira de cana de pesca que o atraia insistentemente, sem razão já que havia lá um guizo que acordava quando algo importante se passasse. Uma vez comprou-me uma cana e lá fui com ele, mas o meu guizo dormiu toda a noite e nunca mais voltei. A minha mãe não olhava para o céu, olhava para mim adivinhando o momento de voltar à toalha, preocupada que as bolachas maria e a fruta regressassem connosco no final do dia. Do que não me lembro mesmo é de nós os três deitados assim na a

Memória da escola primária

Todos temos memórias de caminhos. Durante os primeiros anos da escolaridade fiz o mesmo entre a minha casa e o Colégio Damião de Gois situado a meio da inclinada calçada que ligava a vila baixa à vila alta. Porque a minha memória fica sempre perdida no tempo não me lembro do primeiro dia mas o caminho, esse, ainda é o mesmo. Saia do Bairro do Areal seguindo a rua escura por estreita que se destapava mais à frente no sítio do marco do correio, iluminando o rio logo ali. Cami nhava no sentido de quem segue para o mar sempre pelo passeio empedrado. Vai pelo passeio de pedra ensinou-me minha mãe por uma questão de segurança não fosse o diabo tecê-las e caísse, um dia, pela ribanceira abaixo e me afogasse. Só quando ganhei confiança me atrevi a correr no da esquerda, perigoso quando chovia cheio de lama. Depois da minha casa, a cerca de 80 metros estava a porta de onde saía a Teresa, minha companhia diária. Nasceu dois dias depois de mim. Era linda naqueles olhos azuis e ca

Dia da Mãe

Não me lembro da data da morte da minha mãe. Nem da do seu nascimento. Morreu muito nova, aos cinquenta e poucos anos. Não tenho ideia de todas estas datas. Apenas lembro de me terem dito que tinha sofrido uma embolia cerebral quando lavava garrafas no quintal. E eu a imaginei sentada a cair para a frente sem vida. O meu pai todos os anos fazia água-pé. Ainda hoje a faz com 83 anos. Sei a idade do meu pai porque desde que a minha mãe morreu há uma parte de mim que os celeb ra. Mas a água-pé já não é igual porque as garrafas já não são lavadas da mesma maneira. À minha mãe recordo-a sempre igual seja qual a idade em que me revejo. Como a fotografia a preto e branco que teimo em manter na minha caixa das recordações. Eu cresço ela não. Nunca tive tempo para a observar. Passava sempre a correr para limpar a casa, coser roupa, cozinhar, ir à mercearia ali mesmo à porta. Recordo de a ver sair da terra onde nasci quando um mês por ano íamos até à praia e levava as roupas, os tac

O impacto da informação na nossa vida

O telemóvel avisou-me novamente da notificação do Observador. Sem me consultar criou um som específico para isso e depois disse-me: podes silenciar em qualquer altura, deixando-me ficar com a sensação de controlo. Mesmo à distância sei do que se trata e, em cegueira, penso que mando. Ele sabe como funciona o meu cérebro e manda mesmo sem ver. As suas competências são mais eficazes. Eu lido com expectativas e atribuições ele domina-me o locus de controlo interno. Filho da puta. O meu pai nunca teve telemóvel. Um dia esforcei-me para lhe mostrar as vantagens da tecnologia. Pai podias ver-me e falar comigo, vês, olha aqui. Se me quiseres ver levantas o cu da cadeira e vens cá, respondeu. Calei-me e desculpei-me que lia as notícias sentado. Hoje visitei-o e perguntei-lhe para que serve eu saber das desgraças que passam no mundo. - Quais desgraças? Perguntou com uma voz de prazer desinformada sorrindo ao mesmo tempo que franzia o sobrolho. Mostrei-lhe a notícia do Observador. -

Dia do Pai

Era só para te desejar um bom dia. O breve silêncio fez-me adivinhar a resposta. - Telefonaste-me para isso?  - Sim hoje foi para isto é o dia do pai fica sempre bem.  - Pois é, bom dia também para ti, também és pai.  Senti a aproximação. Fui um filho ausente na vida do meu pai. Convivi apenas com a sua sombra. Vou dizer ao teu pai, ouvi muitas vezes lá em casa. Era o rio que nos separava e me ligava a ele quando tocava a buzina da camioneta a avisar que estava a chegar. Habituei-me para a vida ao som e ao tempo que restava para vir a correr para casa. Nunca soube qual a dor que as palmas das suas mãos carregava. Estiveram sempre agarradas ao volante ou a fazer qualquer coisa. Nunca a olharem para mim. Os pais são mais austeros do que as mães. Aprendi. Muitas vezes pergunto-me se é mesmo assim. O determinismo genético tem o seu auge no encontro do espermatozóide com o óvulo, depois disso é o meio que começa a agir sobre o feto. Não há mais intervalos nem descontos. É nesse

A sorte que procuramos

Hoje saiu-me 5,21€ no euromilhões. A máquina avisou cantando-me e mentalizei o coro da letra inexistente: boa, vês, vale a pena jogar, joga, joga outra vez. E eu joguei 2,5€. É o meu limite. Saia ou não saia. Independente do estado emocional ou de mais ou menos dinheiro que tenha, jogo sempre o mesmo. Como não acredito em anjos da guarda deixei que as crenças fossem esmagadas por estreitas esperanças. É o pequeno hábito a recordar-me dos talões apodrecidos na carteira à espera de confirmação. A meu lado um homem raspava freneticamente as raspadinhas. Afogou-se no acaso e saiu. Não desanime, amanhã já sai qualquer coisa, dispararam detrás do balcão. O homem, segurando na mão a moeda com que raspava, voltou-se e olhou em volta a confirmar se era a voz da sorte ou a do azar. Na vida nunca me fui em jogos de fortuna. Saí ao meu pai: - só a trabalhar conseguimos juntar. Matou-me a crença logo de pequenino. Não mais recuperei. Trabalhei e jogo esporadicamente para não me esqu

O que é isto de se estar louco?

Na generalidade não tenho a consciência de estar louco. Conseguimos ter sensibilidade para a dor, percepção das limitações físicas mas como ter consciência que se está definitivamente louco? Não no sentido de doença mental. No sentido de isolamento, de anormalidade. Só os ajuizados me poderão atribuir à loucura o que significa que ficarei cego do senso comum. Ás apalpadelas. Tenho dado por mim a perguntar a outros se estou a pensar bem, se estou a ser compreendido. Inseguro. É como se estivesse a meio de uma ponte e não soubesse qual dos extremos é a normalidade e precisasse de indicações. Mas em outras vezes sinto que estou mesmo muito perto da loucura quando isso conforta e amplia a minha existência, confirma o equilíbrio, estabiliza o estado emocional. A loucura quando me toca é sempre com a mão esquerda. Hoje as narrativas estão vazias dela talvez tocadas de morte pela sua mão direita. Os filhos quando regressam a casa trazem o corpo sem a alma. A normalidade não deix

O relógio Cortebert

Não lembro dos meus pais me terem oferecido uma prenda juntos. As suas vidas pareceram-me sempre duas rectas paralelas que se curvavam para me tocarem alternadamente. Pouparam-me à ansiedade ou à expectativa. A minha mãe comprava-me roupa que apenas podia estrear ao domingo, feriados ou dia de anos. Recordo-me de uma calças amarelas à boca de sino. Vesti-as com uma camisa castanha e tiraram-me uma fotografia a trazer uma importância a que não estava habituado. Do meu pai c ontentava-me com um beijo. Habituei-me a isso e ao seu contrário. Mas no dia em que fiz 18 anos levou-me à ourivesaria Silva e comprou-me um relógio Cortebert clássico que me esvaziou de desculpas futuras.  - Toma, é teu.  Com horas em letra romana, ponteiros finíssimos pretos e um vidro plano que realçava o dourado do mostrador circular cuja beleza nunca mais foi a mesma desde que o parti e foi substituído por um vidro abaulado. Tomei a minha maioridade das mãos do ourives porque o meu pai é homem de p

O tempo não nos mostra o futuro

Enquanto espero percorro o passado e já não consigo prever o futuro, ao contrário do que acontecia quando fazia obra. Era um tempo fechado para dentro com coisas de fora, focado em coisas importantes para mais do que são hoje. Hoje o tempo é mais aberto, mais permissivo. Mas foi sempre ele que mandou porque omnisciente. Muitas vezes pareceu-me um tempo igual ao sonho atraiçoado de um pobre ocupado com desculpas esfarrapadas. E mentimos quando dizemos que não temos tempo porque ele está lá, embora imprevisível. O meu tempo já não é o mesmo. Hoje divido-o à minha maneira. Já sou só eu. O tempo não nos mostra o futuro, apenas o passado.

O que significa "filho da terra"

O clube desportivo fazia 93 anos e por insistência do meu pai fui ao almoço. Desculpo a sua teimosia para que se certifique que as pessoas da sua idade ainda se lembram de mim. Que a terra não me esqueceu esquecendo-se dele também. Talvez envaidecido lhes diga que eu tenho uma vida bonita. O meu pai é assim, gosta de classificar os outros onde as pessoas por si mais consideradas têm uma vida bonita. Seja lá o que isso for expulsa das nossas conversas os erros que cometo mas permite-lhe sonhar comigo a cores. Cheguei um pouco mais cedo e fiz tempo. Na porta de entrada fui perdendo a conta ao que a minha visão absorvia e às memórias longínquas que o meu cérebro rebuscava. De todas as vezes passadas, incontáveis, que saí por aquela porta deixei sempre lá dentro um pouco de mim. Desta fui buscar um pouco do que era meu. - Obrigado, ouvi. Amparei-o para subir o lanço de escadas segurando-o pelo braço direito do seu corpo. Na mão esquerda trazia pendurada a bengala que o ajuda

A Casa do Cinema

Fotos de Sérgio Paciência Photographer A CASA DO CINEMA O cinema das Minas da Panasqueira nasce em 1928 na ocupação da antiga escola primária, com o barulho de uma Kodac de 16 mm para cinema mudo e um projector Kodascope. Posteriormente muda-se para uma sala polivalente. Um edifício de dois pisos construído para acompanhar as artes e distrair dos pesadelos da mina. Em alvenaria de pedra xisto, as suas cores cinza, verde e laranja justificavam a riqueza dos solos e a imensa a tividade mineira local. O edifício mostrava na sua frente um arco em xisto ao cutelo que lhe conferiu para a modernidade o registo de memória e identidade. A Casa do Cinema, como ficou conhecida. No piso térreo, o átrio com a bilheteira ao centro flanqueada por duas passagens estreitas que dificultavam a entrada aos avarentos para a ampla sala de projeção. Dividida em primeira, segunda e terceira plateia a sala estava preenchida por filas de bancos corridos em madeira pobre ladeando um corredor ce

A senhora que cuidava das "vida dos outros"

Esta historia tem apenas duas personagens. De seus nomes “minha vida” e “vida do outro”. São personagens neutras de género, livres de etiquetas, existências comuns mas expectativas contraditórias. A “minha vida” é pretensiosa. Anda de olhos fechados com a certeza que sabe o caminho de cor porque é isso que o coração lhe diz. Mas a cabeça mostra que quando se caminha de olhos fechados, ainda que demos por certo o caminho sabido, são círculos que se desenham com os pés. A “vi da do outro” sempre perturba a “minha vida” porque não dança de olhos fechados a mesma música.  Quando não se sabe dançar no escuro pouco se acerta de dia, pensa a “minha vida” que acredita que as coisas que realmente importam são aquelas que a “vida do outro” vê, porque isso as aproxima em tamanho. Há coisas que a “minha vida” esconde da “vida do outro”. Coisas de personagem normal, comuns, que por a fazer sentir tão pequena, tornam-se estranhas. Não devia porque da mesma forma que fazemos luto por