Avançar para o conteúdo principal

A sorte que procuramos

Hoje saiu-me 5,21€ no euromilhões. A máquina avisou cantando-me e mentalizei o coro da letra inexistente: boa, vês, vale a pena jogar, joga, joga outra vez. E eu joguei 2,5€. É o meu limite. Saia ou não saia. Independente do estado emocional ou de mais ou menos dinheiro que tenha, jogo sempre o mesmo. Como não acredito em anjos da guarda deixei que as crenças fossem esmagadas por estreitas esperanças. É o pequeno hábito a recordar-me dos talões apodrecidos na carteira à espera de confirmação.

A meu lado um homem raspava freneticamente as raspadinhas. Afogou-se no acaso e saiu. Não desanime, amanhã já sai qualquer coisa, dispararam detrás do balcão. O homem, segurando na mão a moeda com que raspava, voltou-se e olhou em volta a confirmar se era a voz da sorte ou a do azar.

Na vida nunca me fui em jogos de fortuna. Saí ao meu pai: - só a trabalhar conseguimos juntar. Matou-me a crença logo de pequenino. Não mais recuperei. Trabalhei e jogo esporadicamente para não me esquecer da minha mãe que tinha um número fixo de cautela que o meu avô lhe deixou de herança. Tenho medo que saia assim que a deixe de comprar dizia-me. A minha mãe foi sempre uma crente. Uma crente com medo e sem sorte.

Os crentes com sorte não suspeitam minimamente que são apenas crentes com sorte.

25/05/2019

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A senhora que cuidava das "vida dos outros"

Esta historia tem apenas duas personagens. De seus nomes “minha vida” e “vida do outro”. São personagens neutras de género, livres de etiquetas, existências comuns mas expectativas contraditórias. A “minha vida” é pretensiosa. Anda de olhos fechados com a certeza que sabe o caminho de cor porque é isso que o coração lhe diz. Mas a cabeça mostra que quando se caminha de olhos fechados, ainda que demos por certo o caminho sabido, são círculos que se desenham com os pés. A “vi da do outro” sempre perturba a “minha vida” porque não dança de olhos fechados a mesma música.  Quando não se sabe dançar no escuro pouco se acerta de dia, pensa a “minha vida” que acredita que as coisas que realmente importam são aquelas que a “vida do outro” vê, porque isso as aproxima em tamanho. Há coisas que a “minha vida” esconde da “vida do outro”. Coisas de personagem normal, comuns, que por a fazer sentir tão pequena, tornam-se estranhas. Não devia porque da mesma forma que fazemos luto...

Um dia hei-de levar-te comigo

Hoje lembrei-me da minha mãe e os meus olhos humedeceram-se mais uma vez. Que conexão vertical é esta? Que 28 anos depois da sua morte ainda subsiste? Gostava que existisses na minha felicidade. O amor de filho é assim, tardio. Fica sempre para mostrar mais tarde. É um estado de desejos inacabados: " Quando trabalhar hei-de ganhar dinheiro para te comprar aquilo que mais gostas", "h ei-de levar-te àquele sítio que nunca foste".  É um amor que nasce inconsciente, que se forma do confronto com a realidade e nunca se deixa de sentir com a ausência. É o amor do instinto da sobrevivência, da promessa incumprida. Com a certeza que nunca caímos sozinhos.  As recordações que lhe fiquei foram do frio da sua cara nos meus lábios no dia em que morreu. E do último abraço que lhe dei. O primeiro e único da minha vida sem resposta. Depois daquele momento, fui aprendendo os defeitos que não me tinham sido permitidos conhecer-lhe. A genética, tal como os anuários, são ciências exac...

Balonismo

  Numa tarde de arrumação de selos, a única e breve prática que tive de guardar coisas inúteis, vi aquela capa de janelas simétricas e cor uniforme. No instante fui invadido por uma curiosidade impetuosa da mesma forma que olho para o pão acabado de torrar com a manteiga ao pé. Comecei a gostar dos Led Zeppeling depois de ouvir o álbum Physical Graffiti em casa de um amigo. Tive de esperar alguns dias que a minha mãe me desse dinheiro para ambicionar sair da loja da especialidade com aquele vinil debaixo do braço, mas o abono não chegou para comprar o duplo. Conhecedor dos meus limites musicais, fez um compasso de tempo igual ao que fazemos quando duvidamos do que ouvimos, mas perante a insistência da certeza do meu quero muito, disse "começa por este que é o primeiro deles". O Hernani era sapiente na arte da antroponomástica musical, habilidade que nunca soube como conseguiu desenvolver porque estava sempre na loja quando eu lá ia (morava por cima?) e a Google ainda não tinh...