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A sorte que procuramos

Hoje saiu-me 5,21€ no euromilhões. A máquina avisou cantando-me e mentalizei o coro da letra inexistente: boa, vês, vale a pena jogar, joga, joga outra vez. E eu joguei 2,5€. É o meu limite. Saia ou não saia. Independente do estado emocional ou de mais ou menos dinheiro que tenha, jogo sempre o mesmo. Como não acredito em anjos da guarda deixei que as crenças fossem esmagadas por estreitas esperanças. É o pequeno hábito a recordar-me dos talões apodrecidos na carteira à espera de confirmação.

A meu lado um homem raspava freneticamente as raspadinhas. Afogou-se no acaso e saiu. Não desanime, amanhã já sai qualquer coisa, dispararam detrás do balcão. O homem, segurando na mão a moeda com que raspava, voltou-se e olhou em volta a confirmar se era a voz da sorte ou a do azar.

Na vida nunca me fui em jogos de fortuna. Saí ao meu pai: - só a trabalhar conseguimos juntar. Matou-me a crença logo de pequenino. Não mais recuperei. Trabalhei e jogo esporadicamente para não me esquecer da minha mãe que tinha um número fixo de cautela que o meu avô lhe deixou de herança. Tenho medo que saia assim que a deixe de comprar dizia-me. A minha mãe foi sempre uma crente. Uma crente com medo e sem sorte.

Os crentes com sorte não suspeitam minimamente que são apenas crentes com sorte.

25/05/2019

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