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Dia da Mãe

Não me lembro da data da morte da minha mãe. Nem da do seu nascimento. Morreu muito nova, aos cinquenta e poucos anos. Não tenho ideia de todas estas datas. Apenas lembro de me terem dito que tinha sofrido uma embolia cerebral quando lavava garrafas no quintal. E eu a imaginei sentada a cair para a frente sem vida.

O meu pai todos os anos fazia água-pé. Ainda hoje a faz com 83 anos. Sei a idade do meu pai porque desde que a minha mãe morreu há uma parte de mim que os celebra. Mas a água-pé já não é igual porque as garrafas já não são lavadas da mesma maneira.

À minha mãe recordo-a sempre igual seja qual a idade em que me revejo. Como a fotografia a preto e branco que teimo em manter na minha caixa das recordações. Eu cresço ela não.

Nunca tive tempo para a observar. Passava sempre a correr para limpar a casa, coser roupa, cozinhar, ir à mercearia ali mesmo à porta. Recordo de a ver sair da terra onde nasci quando um mês por ano íamos até à praia e levava as roupas, os tachos e os panos de limpar que nunca saiam das suas mãos. Tinha uma pele muito branca pelo pouco sol que apanhava.

A culpa foi sempre das garrafas que cobriam tudo de um verde escuro sem vida. Traziam nuvens negras que lhe inquinavam a consciência e a resignava. Não lhes guardo nenhum ódio apenas o silêncio.

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