Avançar para o conteúdo principal

A senhora que cuidava das "vida dos outros"




Esta historia tem apenas duas personagens. De seus nomes “minha vida” e “vida do outro”. São personagens neutras de género, livres de etiquetas, existências comuns mas expectativas contraditórias.

A “minha vida” é pretensiosa. Anda de olhos fechados com a certeza que sabe o caminho de cor porque é isso que o coração lhe diz. Mas a cabeça mostra que quando se caminha de olhos fechados, ainda que demos por certo o caminho sabido, são círculos que se desenham com os pés.

A “vida do outro” sempre perturba a “minha vida” porque não dança de olhos fechados a mesma música. 

Quando não se sabe dançar no escuro pouco se acerta de dia, pensa a “minha vida” que acredita que as coisas que realmente importam são aquelas que a “vida do outro” vê, porque isso as aproxima em tamanho.

Há coisas que a “minha vida” esconde da “vida do outro”. Coisas de personagem normal, comuns, que por a fazer sentir tão pequena, tornam-se estranhas. Não devia porque da mesma forma que fazemos luto por pessoas que não conhecemos também existe uma mágoa colectiva que todos escondemos.

Na minha rua havia uma senhora que cuidava das “vida do outro” que por ali andavam e lhe batiam à porta procurando curas para males que atraiçoam. Raramente a vi sair à rua porque para cuidar das “vida dos outros” não tinha tempo para cuidar da sua.

14/05/2020

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Comparações

Sempre que vou a casa do meu pai entro pela garagem e faço-me anunciar pelo toque da campainha como qualquer visita. Tomei este hábito desde que a minha mãe morreu. Atravesso o que foi outrora o quarto onde nasci, e o sol da manhã descobre-me projectando a minha sombra onde durante toda a infância esteve a cama dos meus pais. Calculo que seja pelas boas memórias que se tornou hábito. Passo pelo espaço estreito entre a parede e o carro e pergunto-me: terá toda a minha vida sido condicionada por este retângulo exíguo? Nasci num bairro onde só havia rapazes. Fomos os irmãos mais velhos uns dos outros. As mães eram todas domésticas e pareciam não se preocupar com as nossas ausências. Também nunca nos queixávamos delas, como se as suas vidas não tivessem importância nenhuma para nós. Ontem ouvi dizer de alguém novo de idade: - se os meus pais tivessem insistido mais comigo ou me tivessem obrigado a estudar ou a fazer algumas coisas que eu não queria, talvez a minha vida fosse diferente para...

Nomes com duplo apelido

Não tenho memória autobiográfica anterior ao dia em que a minha mãe me levou pela mão à entrada do colégio para aprender as letras. Foi ali que convivi com a tradição secular de um recreio apenas para os rapazes, coisa que não estranhei porque nas brincadeiras da minha rua também não havia raparigas. O Damião de Góis em Alenquer era dirigido pelo Padre Zé, de quem me lembro simples num diminutivo que contrastava com a sua presença alta, de carácter pragmático, cuja bondade divina não se fazia sentir fora das aulas de religião e moral. Tive duas professoras no ensino primário. Talvez por ter sido a primeira, recordo a Maria Francisca com mais carinho do que a Maria Irene. Devo ter sido, nem sempre, um miúdo bem comportado porque não me tenho presente na ponta da cana da índia que repousava entre o quadro preto e os mapas do Portugal Administrativo, Insular e Ultramarino, mas lembro-me das vezes que tive dificuldade em subir para o estrado onde uma régua cega descia na palma da minha mão...

Voz e Dois Pianos

A idade trouxe-me pieguice emocionada. Apercebi-me disso quando a visão se me turvou por diversas vezes. A última vez que estive perto do Vitorino foi numa longínqua Festa do Avante. Sempre de boina preta, ontem de óculos escuros, vestia um casaco e umas calças do mesmo preto num desuso a que me habituei mas que aceitei por já não se fazerem cantadores assim. Os contadores de historias comuns estão a desaparecer porque nunca renunciaram à simplicidade. Mas também " porque já não há encontros como aqueles do café Expresso, que mais parecia uma carruagem de comboio porque tinha um balcão corrido, onde (ele) se sentava com o Herberto Hélder e outra gente que também não tinha importância nenhuma porque na verdade o que era importante foram as palavras que ficaram. Ou a do tocador de concertina do Redondo que tocava sempre com uma fotografia da namorada na parte detrás do instrumento e que, só por isso, merecia ser cantado ". Se há coisas que lamento na minha vida foi não ter vivi...