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O relógio Cortebert

Não lembro dos meus pais me terem oferecido uma prenda juntos.

As suas vidas pareceram-me sempre duas rectas paralelas que se curvavam para me tocarem alternadamente. Pouparam-me à ansiedade ou à expectativa.

A minha mãe comprava-me roupa que apenas podia estrear ao domingo, feriados ou dia de anos. Recordo-me de uma calças amarelas à boca de sino. Vesti-as com uma camisa castanha e tiraram-me uma fotografia a trazer uma importância a que não estava habituado.

Do meu pai contentava-me com um beijo. Habituei-me a isso e ao seu contrário. Mas no dia em que fiz 18 anos levou-me à ourivesaria Silva e comprou-me um relógio Cortebert clássico que me esvaziou de desculpas futuras. 

- Toma, é teu. 

Com horas em letra romana, ponteiros finíssimos pretos e um vidro plano que realçava o dourado do mostrador circular cuja beleza nunca mais foi a mesma desde que o parti e foi substituído por um vidro abaulado.

Tomei a minha maioridade das mãos do ourives porque o meu pai é homem de poucas falas e muitas certezas. Fiquei dono do meu tempo sem estar à espera. Talvez por isso adorei o relógio e tive a certeza que ele fazia parte de mim como um irmão toda a vida.

Ainda hoje o guardo. Já sem tempo para me dar. Não resistiu ao tempo de hoje em que o cansaço não deixa espaço para a contemplação.

21/12/2019




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