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A Casa do Cinema

Fotos de Sérgio Paciência Photographer

A CASA DO CINEMA

O cinema das Minas da Panasqueira nasce em 1928 na ocupação da antiga escola primária, com o barulho de uma Kodac de 16 mm para cinema mudo e um projector Kodascope. Posteriormente muda-se para uma sala polivalente. Um edifício de dois pisos construído para acompanhar as artes e distrair dos pesadelos da mina. Em alvenaria de pedra xisto, as suas cores cinza, verde e laranja justificavam a riqueza dos solos e a imensa atividade mineira local. O edifício mostrava na sua frente um arco em xisto ao cutelo que lhe conferiu para a modernidade o registo de memória e identidade. A Casa do Cinema, como ficou conhecida.

No piso térreo, o átrio com a bilheteira ao centro flanqueada por duas passagens estreitas que dificultavam a entrada aos avarentos para a ampla sala de projeção. Dividida em primeira, segunda e terceira plateia a sala estava preenchida por filas de bancos corridos em madeira pobre ladeando um corredor central por onde os arrumadores iam indicando com dificuldade os assentos. Ao fundo, o palco com uma larga tela ao alto cujo branco contrastava com o negro dos mineiros que conversavam amiúde ao despique com os acompanhamentos musicais, as crianças de colo a chorar e os cães a ladrar de fora.

No lado esquerdo logo à entrada, as escadas de piso, corrimão e guarda-corpo em madeira trabalhada avisava o acesso a um balcão superior já com bancos compartimentados em madeira nobre, reservados para as figuras importantes que assistiam soberbos às matinés das coboiadas e às quartas-feiras dos filmes para adultos, sob o foco de luz que fugia da sala de projeção à retaguarda onde o enrolador já sabia as cenas de cor.

Entre 1934 e 1944 as minas eram das maiores do mundo na extração de volfrâmio e a Panasqueira um local neutro onde nazis e aliados conviviam e viam filmes ordeiramente. Ali enterrava-se a vida para fazer sair o mineral. Longe dali, nos cofres do Estado Novo, entrava o ouro espoliado.

António tinha acabado de subir a escadaria. Mantinha-se encostado ao bar indiferente ao barulho. Sentiu a pedra preta no bolso. Sabia-a brilhante e pesada. Os tempos de fome e racionamento empurraram-no a descer para o isolamento. Era assim que se sentia quando enfrentava a escuridão das galerias. O dinheiro pagava o risco. O hábito diminuía o medo.

Tal como nos filmes, foram muitas as gentes simples que passaram por este local para seguirem o sonho de uma vida melhor. Sonho que chegou e partiu de repente sem dar tempo a muitos deles para se erguerem.












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