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Mensagens

Balonismo

  Numa tarde de arrumação de selos, a única e breve prática que tive de guardar coisas inúteis, vi aquela capa de janelas simétricas e cor uniforme. No instante fui invadido por uma curiosidade impetuosa da mesma forma que olho para o pão acabado de torrar com a manteiga ao pé. Comecei a gostar dos Led Zeppeling depois de ouvir o álbum Physical Graffiti em casa de um amigo. Tive de esperar alguns dias que a minha mãe me desse dinheiro para ambicionar sair da loja da especialidade com aquele vinil debaixo do braço, mas o abono não chegou para comprar o duplo. Conhecedor dos meus limites musicais, fez um compasso de tempo igual ao que fazemos quando duvidamos do que ouvimos, mas perante a insistência da certeza do meu quero muito, disse "começa por este que é o primeiro deles". O Hernani era sapiente na arte da antroponomástica musical, habilidade que nunca soube como conseguiu desenvolver porque estava sempre na loja quando eu lá ia (morava por cima?) e a Google ainda não tinh

Dia do Pai

Percebi que as rugas se aprofundaram quando de manhã olhei de relance o espelho, no uso da visão periférica. De fugida, já a sair da zona do reflexo, quando deixamos de ver mas a imagem ainda se mantém mentalmente por alguns segundos. Corrigi de seguida dando-lhes espaço e tempo para se me mostrarem melhor. Agora de frente, vi-as fundas. Três de cada lado, geometricamente saindo de um ponto comum, afastando-se intencionalmente para percorrerem a têmpora como a dizer-me que já não governo aquela área. Reclamam quando semicerro os olhos no igual esforço que faço para ler se não tenho óculos. Atribuí a intencionalidade a um estímulo do inconsciente provocado pela visita que fiz ao meu pai em que ele aproveitou para me mostrar as novas galinhas. Todas pequenas, á espera de crescerem ali. Compradas no mercado semanal no meio do pó da palha e de penas, o mesmo que me foi sempre comum e me secavam as narinas quando as enxotava para lhes roubar os ovos. Vi-lhes os pés cravados nas minhas fonte

A Velha

Tinha acabado de fazer a curva e deparei-me com ela mesmo ao meio da estrada. Soltava impropérios direitos a um pinhal, ainda distante, à sua frente. Vi-a de lado, curvada e pensei-a deitada em cima de uma bola insuflável, daquelas grandes que se usam no pilates, verde de preferência, tal perfeita era a linha curva da sua coluna e de tal forma acentuada que fazia com que a sua cabeça pendesse pouco acima da sua cintura mas à altura da minha. Linha de uma vida também de trabalho simbolizada pela enxada que segurava na mão direita e que levantava repetidamente batendo-a de seguida contra o chão como que marcando o ritmo do som da sua raiva. Lembrei-me do movimento que o meu pai fazia quando a lâmina teimava em deixar a parte do cabo que se fazia mais grosso mas em batidas diferentes no ritmo e na força porque o meu pai era mais novo e nunca lhe ouvi tais ganas. Tenho a certeza que seria naquela sua mão, e não na outra, porque o fim do meio da estrada, onde ela teimava em se manter, demor

Museu Nacional da Resistência e Liberdade

Quando era miúdo morava ao pé de dois irmãos. Ela, com um filho 4 anos mais velho do que eu. Ele e a companheira, sem filhos, um casal que permanecia ali por tempos muito curtos, onde regressavam amiúde trazendo-me sempre alguma guloseima que me iludia na compreensão de que viviam numa autocaravana a maior parte do tempo. Em tempos e lugares incertos. Soube mais tarde que as viagens eram entradas e saídas na clandestinidade, que associei, mais tarde ainda, aos panfletos que apareciam esporadicamente em cima da mesa da cozinha que desapareciam assim que eu chegava. Se alguma vez foram presos políticos, não o soube. Frequentei aquela casa vezes sem conta onde nunca se discutia política ou religião mesmo depois dos clandestinos passarem a habitar uma casa presa ao chão. Ateus convictos e comunistas por simpatia, vivo com a certeza que defendiam apenas o pensamento livre, voasse ele depois para onde quisesse. Lembrei-me deles hoje quando visitei o Museu Nacional de Resistência e Liberdade

Voz e Dois Pianos

A idade trouxe-me pieguice emocionada. Apercebi-me disso quando a visão se me turvou por diversas vezes. A última vez que estive perto do Vitorino foi numa longínqua Festa do Avante. Sempre de boina preta, ontem de óculos escuros, vestia um casaco e umas calças do mesmo preto num desuso a que me habituei mas que aceitei por já não se fazerem cantadores assim. Os contadores de historias comuns estão a desaparecer porque nunca renunciaram à simplicidade. Mas também " porque já não há encontros como aqueles do café Expresso, que mais parecia uma carruagem de comboio porque tinha um balcão corrido, onde (ele) se sentava com o Herberto Hélder e outra gente que também não tinha importância nenhuma porque na verdade o que era importante foram as palavras que ficaram. Ou a do tocador de concertina do Redondo que tocava sempre com uma fotografia da namorada na parte detrás do instrumento e que, só por isso, merecia ser cantado ". Se há coisas que lamento na minha vida foi não ter vivi

Comparações

Sempre que vou a casa do meu pai entro pela garagem e faço-me anunciar pelo toque da campainha como qualquer visita. Tomei este hábito desde que a minha mãe morreu. Atravesso o que foi outrora o quarto onde nasci, e o sol da manhã descobre-me projectando a minha sombra onde durante toda a infância esteve a cama dos meus pais. Calculo que seja pelas boas memórias que se tornou hábito. Passo pelo espaço estreito entre a parede e o carro e pergunto-me: terá toda a minha vida sido condicionada por este retângulo exíguo? Nasci num bairro onde só havia rapazes. Fomos os irmãos mais velhos uns dos outros. As mães eram todas domésticas e pareciam não se preocupar com as nossas ausências. Também nunca nos queixávamos delas, como se as suas vidas não tivessem importância nenhuma para nós. Ontem ouvi dizer de alguém novo de idade: - se os meus pais tivessem insistido mais comigo ou me tivessem obrigado a estudar ou a fazer algumas coisas que eu não queria, talvez a minha vida fosse diferente para

Nomes com duplo apelido

Não tenho memória autobiográfica anterior ao dia em que a minha mãe me levou pela mão à entrada do colégio para aprender as letras. Foi ali que convivi com a tradição secular de um recreio apenas para os rapazes, coisa que não estranhei porque nas brincadeiras da minha rua também não havia raparigas. O Damião de Góis em Alenquer era dirigido pelo Padre Zé, de quem me lembro simples num diminutivo que contrastava com a sua presença alta, de carácter pragmático, cuja bondade divina não se fazia sentir fora das aulas de religião e moral. Tive duas professoras no ensino primário. Talvez por ter sido a primeira, recordo a Maria Francisca com mais carinho do que a Maria Irene. Devo ter sido, nem sempre, um miúdo bem comportado porque não me tenho presente na ponta da cana da índia que repousava entre o quadro preto e os mapas do Portugal Administrativo, Insular e Ultramarino, mas lembro-me das vezes que tive dificuldade em subir para o estrado onde uma régua cega descia na palma da minha mão