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A Praínha

Os registos das minhas memórias declarativas são, quase sempre, aquelas que consigo reconstruir a partir de sentimentos.

Lembro-me daquela enseada, a que chamávamos praínha, com o mar à frente e uma muralha de rochas atrás onde passei tempos perdidos a lançar o disco para o céu na esperança que regressasse o mais próximo possível sem tirar os pés do mesmo sitio.

Quem também passava tempos infinitos a olhar para o céu era o meu pai. Para um céu diferente do meu, onde o disco era substituído por uma ponteira de cana de pesca que o atraia insistentemente, sem razão já que havia lá um guizo que acordava quando algo importante se passasse. Uma vez comprou-me uma cana e lá fui com ele, mas o meu guizo dormiu toda a noite e nunca mais voltei.

A minha mãe não olhava para o céu, olhava para mim adivinhando o momento de voltar à toalha, preocupada que as bolachas maria e a fruta regressassem connosco no final do dia.

Do que não me lembro mesmo é de nós os três deitados assim na areia.

Quase, quase que diria que nunca tinha acontecido.



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