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A cadela Laica


A minha mãe queria-me menina. Estou certo disso.

Não enquanto viveu que se me tivesse confessado mas adivinhei-lhe sempre pela forma como me pegava ao colo, me mantinha o cabelo e pelo enxoval que teimava em me estrear novo.

Mais mês, menos coisa, comecei a ficar sofrido e reclamei calções. Olha para ti com essas pernas tão magras que parecem uns canivetes. Conheci-lhe esta forma de modular as coisas. Deixava-me desequilibrado aos bons e maus conselhos da consciência esforçando-se por os dividir a seu favor.

Os canivetes e a teimosia castigaram-me em óleo fígado de bacalhau vertido numa colher de sopa diária. Em frascos verde escuro, altos, rectangulares, sem qualquer sabor disfarçado e de uma intensidade que ainda hoje trago no olfacto. Aprendi a fugir-lhes para a loja dos vizinhos recuperando-me no cheiro da infusão de ervas e na meiguice daquele bichon maltês. 

A sapataria onde me refugiava era logo ali a um braço esquerdo da minha porta e a paredes meias com outra do mesmo expediente. Montra rectangular, exibindo modelos em prateleiras de vidro, ladeada por duas portas de madeira castanha escura sem vidros. No interior era uma sapataria igual a todas as outras da minha rua. Ao meio um balcão fundo, em madeira maciça, e do outro lado um banco almofadado rasteiro que sentava os clientes, colocando-os de costas para a montra enquanto experimentavam o número certo. As paredes preenchidas com móveis da mesma madeira e cor das portas, guardavam caixas de sapatos de diferentes números e modelos em preto e castanho. O chão em azulejo gasto, frio, era imune ao desconforto de quem se descalçava. As sapatarias da minha rua não eram finas na apresentação nem acolhedoras no trato. Ao fundo, todas tinham uma porta que escondia a oficina onde o cheiro a colas e a couro que me eram de ocasião passaram a ser de costume. Esta tinha também a particularidade de ter um braseiro sempre aceso onde infundia folhas de eucalipto. 

A rua onde nasci é estreita. Mais estreita do que o leito do rio que lhe corria paralelo. Que ainda hoje corre mas num fio que trocou o paralelismo pela irregularidade das ervas que servem de ninho a patos e galinhas de água.

Tudo o que era importante me ficava do lado esquerdo quando saia a correr de casa. Os amigos, a escola, a calçadinha, o marco do correio, a mercearia do Soares e a loja do Gandum onde as mães compravam os panos para costurarem os bibes. E também todas as sapatarias que a estreita rua exibia. Não sei porque não ficou conhecida como a rua dos sapateiros seguindo a memória colectiva. Talvez porque tanto a jusante como a montante o areal do rio permitia o prazer do sol, dos banhos e dos pés descalços.




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