Numa tarde de arrumação de selos, a única e breve prática que tive de guardar coisas
inúteis, vi aquela capa de janelas simétricas e cor uniforme. No instante fui
invadido por uma curiosidade impetuosa da mesma forma que olho para o pão
acabado de torrar com a manteiga ao pé. Comecei a gostar dos Led Zeppeling
depois de ouvir o álbum Physical Graffiti em casa de um amigo.
Tive de esperar alguns dias que a minha mãe me desse dinheiro para ambicionar sair da loja da especialidade com aquele vinil debaixo do braço, mas o abono não chegou para comprar o duplo. Conhecedor dos meus limites musicais, fez um compasso de tempo igual ao que fazemos quando duvidamos do que ouvimos, mas perante a insistência da certeza do meu quero muito, disse "começa por este que é o primeiro deles".
O Hernani era sapiente na arte da antroponomástica musical, habilidade que nunca
soube como conseguiu desenvolver porque estava sempre na loja quando eu lá ia
(morava por cima?) e a Google ainda não tinha nascido. A minha lealdade à sua
aptidão era inabalável e aceitei a sugestão. Contentei-me com o que trazia o
zeppelin na capa. Poderia ter sido outro, mas foi com aquela redundância,
começar pelo primeiro, que aos 14 anos me mudei do psicadélico para sons mais
agressivos e vozes agudas ajustadas a guitarras insurgentes, sem com isso
comprometer o cabelo curto e a condição de paz caseira.
A minha mãe via na compra dos vinis um investimento ao meu futuro. Cada vez que
entrava com um vinil era a janela da sua oportunidade para me manter em casa
até à exaustão auditiva e não cair nos caminhos da droga que começava a fazer
estragos nas companhias mais próximas. Estou certo que aquele zeppelin percebeu
isso e acrescentou-me também os benefícios da holística. Ambicionar ver mundo a
três dimensões sem perder tempo a focar apenas o céu. Ficou-me, desde ai, a
vontade de subir num balão de ar quente.
Entrei em Coruche pelo lado das pontes de ferro onde me esperava um grande cartaz
alusivo ao evento. De olhos postos no horizonte procurei sem êxito os aeróstatos.
A minha imaginação via-os ao largo, inflados, cobrindo todo o vale do Sorraia
de cores, à espera da minha autorização para lhes dar gás. “Sabes onde fica o
festival internacional de balonismo?” O jovem, sentado no banco de jardim numa
posição possível apenas para criaturas abaixo dos 20 anos, disse “sei, levo-o
lá”. Desfez-se dos nós, retirou um dos auriculares e sem esperar a minha
reacção levantou a bicicleta do chão energicamente. “Siga-me!” ordenou. E
começou a pedalar obrigando a segui-lo sem qualquer racionalidade. Percorreu
100 metros em linha recta e parou. Esticou o braço esquerdo, apontou para um
campo rectangular à sua frente e disse-me “fica ali!”, orgulhoso no sentido de
dever cívico cumprido no igual que sentimos quando votamos. Olhei e vi-o vazio
de gotas invertidas coloridas. Fiz uma pausa igual às que faço quando penso que
isto não me está a acontecer e, ainda envolvido pelo balão de ar quente da
minha imaginação, aterrei sem suavidade devido às poeiras e vento forte.
Recompus-me da queda pelo filtro do meu consciente. Se á medida que envelheço o
afoito diminuiu proporcionalmente à cautela e aos caldos de galinha, ainda
assim, e tal como aos 14 anos, continua a ser o destemor do desconhecido que
possibilita novas descobertas, mesmo que às vezes aterre sem suavidade.
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