Não tenho memória autobiográfica anterior ao dia em que a minha mãe me levou pela mão à entrada do colégio para aprender as letras. Foi ali que convivi com a tradição secular de um recreio apenas para os rapazes, coisa que não estranhei porque nas brincadeiras da minha rua também não havia raparigas. O Damião de Góis em Alenquer era dirigido pelo Padre Zé, de quem me lembro simples num diminutivo que contrastava com a sua presença alta, de carácter pragmático, cuja bondade divina não se fazia sentir fora das aulas de religião e moral. Tive duas professoras no ensino primário. Talvez por ter sido a primeira, recordo a Maria Francisca com mais carinho do que a Maria Irene. Devo ter sido, nem sempre, um miúdo bem comportado porque não me tenho presente na ponta da cana da índia que repousava entre o quadro preto e os mapas do Portugal Administrativo, Insular e Ultramarino, mas lembro-me das vezes que tive dificuldade em subir para o estrado onde uma régua cega descia na palma da minha mão direita. Tenho pena de não guardar nenhuma fotografia deste meu período de vida mas tenho presente que foi um ciclo feliz que se fechou no dia em que, por detrás de uma secretária seca de linhas, o Padre Zé e as duas professoras, sem a prerrogativa do “in dubio pró réu”, me puseram na oralidade o saber sobre a História de Portugal. Na sala a assistir estava a minha mãe e os outros pais enquanto uns aguardavam no corredor pela sua vez e outros brincavam no pátio já livres do desassossego. Passaram-me com um simples suficiente que não foi suficientemente justo comparando com a prova do Alexandre Rucha Falé que se levantou da cadeira com um bom já premeditado. Não mais esqueci essa comparação até porque o Alexandre e eu tínhamos nascido no mesmo dia mas foi a partir dali que soube que me faltava um segundo apelido.
Sempre que vou a uma charcutaria fico a olhar os presuntos sem saber qual deles trazer. A maior parte das vezes apenas trago a ideia que nenhum se iguala ao sabor daquele que ainda guardo nas memórias de infância e que vinha sempre comigo quando visitava os meus avós. Os meus avós paternos viviam perto do Louriçal num pequeno ajuntamento com menos de meia dúzia de casas e de acessos difíceis, dando jus ao nome de Casais de Além. Quando pequeno ia lá duas vezes por ano uma das quais para a matança do porco, sempre no rigoroso frio de Inverno para que as carnes não se estragassem na preparação . O meu pai aproveitava para lembrar da sua infância perdida, quando dali saiu para guardar ovelhas. Não havia água canalizada nem luz eléctrica. Os únicos aquecimentos que ali conheci foi um cobertor de papa e uma manta de retalhos que me recolhiam à noite no colchão de palha, aconchegado no Oceano Pacífico que saia de um pequeno rádio Philips preto que colocava debaixo da almofada e que apenas
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