Não tenho memória autobiográfica anterior ao dia em que a minha mãe me levou pela mão à entrada do colégio para aprender as letras. Foi ali que convivi com a tradição secular de um recreio apenas para os rapazes, coisa que não estranhei porque nas brincadeiras da minha rua também não havia raparigas. O Damião de Góis em Alenquer era dirigido pelo Padre Zé, de quem me lembro simples num diminutivo que contrastava com a sua presença alta, de carácter pragmático, cuja bondade divina não se fazia sentir fora das aulas de religião e moral. Tive duas professoras no ensino primário. Talvez por ter sido a primeira, recordo a Maria Francisca com mais carinho do que a Maria Irene. Devo ter sido, nem sempre, um miúdo bem comportado porque não me tenho presente na ponta da cana da índia que repousava entre o quadro preto e os mapas do Portugal Administrativo, Insular e Ultramarino, mas lembro-me das vezes que tive dificuldade em subir para o estrado onde uma régua cega descia na palma da minha mão direita. Tenho pena de não guardar nenhuma fotografia deste meu período de vida mas tenho presente que foi um ciclo feliz que se fechou no dia em que, por detrás de uma secretária seca de linhas, o Padre Zé e as duas professoras, sem a prerrogativa do “in dubio pró réu”, me puseram na oralidade o saber sobre a História de Portugal. Na sala a assistir estava a minha mãe e os outros pais enquanto uns aguardavam no corredor pela sua vez e outros brincavam no pátio já livres do desassossego. Passaram-me com um simples suficiente que não foi suficientemente justo comparando com a prova do Alexandre Rucha Falé que se levantou da cadeira com um bom já premeditado. Não mais esqueci essa comparação até porque o Alexandre e eu tínhamos nascido no mesmo dia mas foi a partir dali que soube que me faltava um segundo apelido.
Esta historia tem apenas duas personagens. De seus nomes “minha vida” e “vida do outro”. São personagens neutras de género, livres de etiquetas, existências comuns mas expectativas contraditórias. A “minha vida” é pretensiosa. Anda de olhos fechados com a certeza que sabe o caminho de cor porque é isso que o coração lhe diz. Mas a cabeça mostra que quando se caminha de olhos fechados, ainda que demos por certo o caminho sabido, são círculos que se desenham com os pés. A “vi da do outro” sempre perturba a “minha vida” porque não dança de olhos fechados a mesma música. Quando não se sabe dançar no escuro pouco se acerta de dia, pensa a “minha vida” que acredita que as coisas que realmente importam são aquelas que a “vida do outro” vê, porque isso as aproxima em tamanho. Há coisas que a “minha vida” esconde da “vida do outro”. Coisas de personagem normal, comuns, que por a fazer sentir tão pequena, tornam-se estranhas. Não devia porque da mesma forma que fazemos luto...
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