Avançar para o conteúdo principal

Dia do Pai



Percebi que as rugas se aprofundaram quando de manhã olhei de relance o espelho, no uso da visão periférica. De fugida, já a sair da zona do reflexo, quando deixamos de ver mas a imagem ainda se mantém mentalmente por alguns segundos. Corrigi de seguida dando-lhes espaço e tempo para se me mostrarem melhor.
Agora de frente, vi-as fundas. Três de cada lado, geometricamente saindo de um ponto comum, afastando-se intencionalmente para percorrerem a têmpora como a dizer-me que já não governo aquela área. Reclamam quando semicerro os olhos no igual esforço que faço para ler se não tenho óculos. Atribuí a intencionalidade a um estímulo do inconsciente provocado pela visita que fiz ao meu pai em que ele aproveitou para me mostrar as novas galinhas. Todas pequenas, á espera de crescerem ali. Compradas no mercado semanal no meio do pó da palha e de penas, o mesmo que me foi sempre comum e me secavam as narinas quando as enxotava para lhes roubar os ovos.
Vi-lhes os pés cravados nas minhas fontes.
Já viste as novas galinhas? Lembro-me, que em vez de olhar os bichos, contornei visualmente o espaço na procura de algo incomum ou fora de sítio, numa desvalorização da presença das desditas. São quatro e um galo! Reforçou, a chamar a atenção antecipando o meu desinteresse.
O meu pai andou sempre á minha frente sem olhar para trás, nem que fosse para ver se eu ainda lá estava. Os nossos interesses e narrativas sempre desencontraram. Ainda vai na frente a conduzir um mundo que mantém inalteradas as cores do seu tempo, sempre redondo, em que as suas mãos giravam o volante de uma camioneta de passageiros. Eu deixo-o pensar que sim. Podia ter-lhe dito que nunca gostei de galinhas ou inventar qualquer coisa para apressar a espera de estar ali. Mas não disse.
Porque foi ele que me ensinou a contornar e a transcender o seu universo e a gostar do tempo quando não dou conta e viajo em mão única. Afinal, as rugas são apenas uma herança visível para me lembrar de tudo o que aprendi.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A matança do porco dos meus avós

Sempre que vou a uma charcutaria fico a olhar os presuntos sem saber qual deles trazer. A maior parte das vezes apenas trago a ideia que nenhum se iguala ao sabor daquele que ainda guardo nas memórias de infância e que vinha sempre comigo quando visitava os meus avós. Os meus avós paternos viviam perto do Louriçal num pequeno ajuntamento com menos de meia dúzia de casas e de acessos difíceis, dando jus ao nome de Casais de Além. Quando pequeno ia lá duas vezes por ano uma das quais para a matança do porco, sempre no rigoroso frio de Inverno para que as carnes não se estragassem na preparação . O meu pai aproveitava para lembrar da sua infância perdida, quando dali saiu para guardar ovelhas. Não havia água canalizada nem luz eléctrica. Os únicos aquecimentos que ali conheci foi um cobertor de papa e uma manta de retalhos que me recolhiam à noite no colchão de palha, aconchegado no Oceano Pacífico que saia de um pequeno rádio Philips preto que colocava debaixo da almofada e que apenas

Voz e Dois Pianos

A idade trouxe-me pieguice emocionada. Apercebi-me disso quando a visão se me turvou por diversas vezes. A última vez que estive perto do Vitorino foi numa longínqua Festa do Avante. Sempre de boina preta, ontem de óculos escuros, vestia um casaco e umas calças do mesmo preto num desuso a que me habituei mas que aceitei por já não se fazerem cantadores assim. Os contadores de historias comuns estão a desaparecer porque nunca renunciaram à simplicidade. Mas também " porque já não há encontros como aqueles do café Expresso, que mais parecia uma carruagem de comboio porque tinha um balcão corrido, onde (ele) se sentava com o Herberto Hélder e outra gente que também não tinha importância nenhuma porque na verdade o que era importante foram as palavras que ficaram. Ou a do tocador de concertina do Redondo que tocava sempre com uma fotografia da namorada na parte detrás do instrumento e que, só por isso, merecia ser cantado ". Se há coisas que lamento na minha vida foi não ter vivi

O relógio Cortebert

Não lembro dos meus pais me terem oferecido uma prenda juntos. As suas vidas pareceram-me sempre duas rectas paralelas que se curvavam para me tocarem alternadamente. Pouparam-me à ansiedade ou à expectativa. A minha mãe comprava-me roupa que apenas podia estrear ao domingo, feriados ou dia de anos. Recordo-me de uma calças amarelas à boca de sino. Vesti-as com uma camisa castanha e tiraram-me uma fotografia a trazer uma importância a que não estava habituado. Do meu pai c ontentava-me com um beijo. Habituei-me a isso e ao seu contrário. Mas no dia em que fiz 18 anos levou-me à ourivesaria Silva e comprou-me um relógio Cortebert clássico que me esvaziou de desculpas futuras.  - Toma, é teu.  Com horas em letra romana, ponteiros finíssimos pretos e um vidro plano que realçava o dourado do mostrador circular cuja beleza nunca mais foi a mesma desde que o parti e foi substituído por um vidro abaulado. Tomei a minha maioridade das mãos do ourives porque o meu pai é homem de p