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A Velha

Tinha acabado de fazer a curva e deparei-me com ela mesmo ao meio da estrada. Soltava impropérios direitos a um pinhal, ainda distante, à sua frente. Vi-a de lado, curvada e pensei-a deitada em cima de uma bola insuflável, daquelas grandes que se usam no pilates, verde de preferência, tal perfeita era a linha curva da sua coluna e de tal forma acentuada que fazia com que a sua cabeça pendesse pouco acima da sua cintura mas à altura da minha. Linha de uma vida também de trabalho simbolizada pela enxada que segurava na mão direita e que levantava repetidamente batendo-a de seguida contra o chão como que marcando o ritmo do som da sua raiva. Lembrei-me do movimento que o meu pai fazia quando a lâmina teimava em deixar a parte do cabo que se fazia mais grosso mas em batidas diferentes no ritmo e na força porque o meu pai era mais novo e nunca lhe ouvi tais ganas. Tenho a certeza que seria naquela sua mão, e não na outra, porque o fim do meio da estrada, onde ela teimava em se manter, demorando-se, afunilava ao fundo para o Nadadouro e os pinheiros que amorteciam os insultos situavam-se à minha direita tal como a mão que segurava a enxada que estava entre mim e ela. Aproximei-me e ela recuou e sentou-se na berma alta da estrada. Então, o que se passa? Não lhe soube logo a idade que dir-me-ia mais à frente, sem eu perguntar, no pouco tempo que permanecemos à conversa. O nome não lho soube mesmo porque não me disse, nem eu perguntei, nesse mesmo tempo em que confessou os seus 81 anos. Dos pinheiros, para onde ela nunca mostrou as costas nem retirou o olhar, apareceram cabeças de cabras que se escondiam entre ervas altas. Tive a certeza que o dono estava escondido por ali porque foi ela que me disse e não se desconfia da verdade de uma vida que colocou o marido de 84 anos numa cama do hospital de Santa Maria e que ainda permite que umas cabras atravessem a estrada para comerem as poucas couves e legumes que eles plantaram com sacrifício e com aquela enxada que servia agora também para outro fim que não sulcar a terra. Prenda uma e coloque-a num tacho, disse. Se calhar era isso mesmo que devia fazer, respondeu-me mantendo a conversa por caminhos de queixas à GNR mas sem escrever no livro de reclamações porque quem não tem telemóvel também não escreve. Apenas usa o telefone fixo que tem dentro de casa, que já não deve ser de disco mas de teclas, mas que, independente disso, não socorre porque as cabras, que conhecem muito bem as manhas dos humanos, tinham tempo para fugir da horta enquanto ela retardava a demora de marcar o número da ajuda.

Estou no tempo em que me custa calçar as sapatilhas para ir correr, como se o corpo tivesse aproveitado a mudança de calendário para me lembrar. Convencido mas não vencido, caminho. Descubro que o corpo me vai mostrando as vantagens da mudança adaptativa aos diferentes ritmos das batidas da enxada. Quando se começa uma corrida e se a intervala com caminhadas, mesmo num passo apressado, é um desalento porque a expectativa do tempo final da correria vai ficando diminuída tantas quantas vezes se recomeça o que se iniciou. Quando se corre numa caminhada, mesmo que seja em passada lenta, é uma vantagem porque o tempo final encurta na proporção das vezes em que se muda a velocidade. É precisamente nessa vantagem que reside a possibilidade de recuperar o tempo que, numa caminhada, paramos para conversar com gentes que vivem a nossa presença, nos olham nos olhos e nos percorrem com o seu olhar, percepcionando, por exemplo, a bolsa que se leva à cintura quando se vai para caminhos longos. Se eu tivesse um telemóvel como o senhor telefonava daqui sentada. Mas quer telefonar? Não vale a pena, a GNR tem que vir quando as cabras estiverem na minha horta. Já viu a minha vida e agora com o meu marido no hospital e tudo.
Tenha calma e não se chateie que isso faz-lhe mal, disse e continuei pelo meio da estrada porque as cabras já não se encontravam na horta, já nem as via, já nem as ouvia e a conversa já percorria a linha da bola de pilates da minha imaginação.




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