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O fio

Quase sempre não me lembro dos sonhos. Quando acontece, o tempo, só pode ser do tempo, encarrega-se de os ir desfocando e passados 15 dias já nada retenho. É como quando, em viagem, me afasto de uma paisagem após a primeira curva. Pior, porque depois da curva, ainda me ficam as cores, os contornos, a luz, o tempo. Nos sonhos não, à primeira curva tudo morre no esquecimento. As curvas e a memória devem se entender em meu desfavor. Registá-los é a oportunidade de os manter enquanto o caminho é a direito.  

Desta vez encontrava-me numa pequena sala desconhecida rodeado de gente dispersa que passou pela minha adolescência. Deveria ser por essa altura porque era assim que me recordo deles. Não me conseguia perceber mas suponho que também os acompanhava na idade.  Lembrava-me de alguns, estavam na mesma de quando os vi pela última vez há muitos anos. Tal como eles, eu também deveria estar de calções. Talvez por tudo isso sentia-me bem.

A sala estava pintada por igual de um castanho cor de mel, não havia portas nem janelas. Estava perfeitamente iluminada mas ninguém se fazia acompanhar da sua sombra. Sentados de pernas cruzadas, costas apoiadas na parede que me fizeram lembrar do corredor da minha escola primária, onde nos encostávamos assim, mas de pé. Na fantasia o espaço não era comprido como o corredor mas uma sala com apenas duas paredes, a da frente e a do lado esquerdo por onde  a conversa corria sobre as alergias que a cada um cabia à vez. 

Acordei do sono profundo, não mais que dez minutos depois de todos terem saído. Activei a memória e não soube endireitar as conversas mas ainda me lembrava do motivo. Era sobre uma pequena placa presa a um fio, ambos em ouro, que os meus pais compraram quando pequeno e que ia passando de mão em mão. Não a via ao pormenor mas sabia-a de cor. Tem gravado, de um lado a inscrição “alérgico à penicilina” e do outro “GrA +RH”. Foi-me marcada ao peito um dia depois de ter comido um kiwi que, no imediato, me encheu de urticária. A minha mãe, vendo-me ainda de berço, assustou-se com aqueles sintomas primordiais. Foi sempre ela que me levou ao médico, às vacinas, à compra de roupa e até, já bastante mais tarde, à prova do meu primeiro fato cuja cor era precisamente igual à das paredes daquela meia sala.

As consultas no posto médico faziam-se de manhã e qualquer urgência fora de horas era resolvida pelo Sr. Enfermeiro Pires, um homem de média estatura escondido numa bata branca, óculos de graduação elevada e aros pretos, que durante muito tempo se manteve na minha memória, a sorrir, agarrado a uma seringa em dia de vacinas. Como a aflição de minha mãe ocorreu depois do almoço, dei por mim no consultório do médico Artur onde o Caladryl ficou-me nos olhos pela cor de rosa e na pele pela sensação de molhado que dificultou o aconchego. 

Durante algum tempo andei com o fio ao pescoço pendurado entre mim e a roupa. Venci o medo da urticária ao mesmo tempo que comecei a tratar por tu as seringas do Pires e passei a usar o fio dentro de uma caixa que guardava no quarto. Que ainda hoje guardo na mesma caixa mas já em quarto diferente.

Não sei qual o significado do sonho nem qual o desejo reprimido que ficou por realizar mas no fio ficaram nós que ainda não consegui desfazer.

 

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