Avançar para o conteúdo principal

Um dia hei-de levar-te comigo


Hoje lembrei-me da minha mãe e os meus olhos humedeceram-se mais uma vez.

Que conexão vertical é esta? Que 28 anos depois da sua morte ainda subsiste? Gostava que existisses na minha felicidade. O amor de filho é assim, tardio. Fica sempre para mostrar mais tarde. É um estado de desejos inacabados: "Quando trabalhar hei-de ganhar dinheiro para te comprar aquilo que mais gostas", "hei-de levar-te àquele sítio que nunca foste". 

É um amor que nasce inconsciente, que se forma do confronto com a realidade e nunca se deixa de sentir com a ausência. É o amor do instinto da sobrevivência, da promessa incumprida. Com a certeza que nunca caímos sozinhos. 

As recordações que lhe fiquei foram do frio da sua cara nos meus lábios no dia em que morreu. E do último abraço que lhe dei. O primeiro e único da minha vida sem resposta.
Depois daquele momento, fui aprendendo os defeitos que não me tinham sido permitidos conhecer-lhe.
A genética, tal como os anuários, são ciências exactas mas não explicam que os vazios não são todos iguais e que há amores que nunca morrem.




Comentários

Mensagens populares deste blogue

Comparações

Sempre que vou a casa do meu pai entro pela garagem e faço-me anunciar pelo toque da campainha como qualquer visita. Tomei este hábito desde que a minha mãe morreu. Atravesso o que foi outrora o quarto onde nasci, e o sol da manhã descobre-me projectando a minha sombra onde durante toda a infância esteve a cama dos meus pais. Calculo que seja pelas boas memórias que se tornou hábito. Passo pelo espaço estreito entre a parede e o carro e pergunto-me: terá toda a minha vida sido condicionada por este retângulo exíguo? Nasci num bairro onde só havia rapazes. Fomos os irmãos mais velhos uns dos outros. As mães eram todas domésticas e pareciam não se preocupar com as nossas ausências. Também nunca nos queixávamos delas, como se as suas vidas não tivessem importância nenhuma para nós. Ontem ouvi dizer de alguém novo de idade: - se os meus pais tivessem insistido mais comigo ou me tivessem obrigado a estudar ou a fazer algumas coisas que eu não queria, talvez a minha vida fosse diferente para...

Nomes com duplo apelido

Não tenho memória autobiográfica anterior ao dia em que a minha mãe me levou pela mão à entrada do colégio para aprender as letras. Foi ali que convivi com a tradição secular de um recreio apenas para os rapazes, coisa que não estranhei porque nas brincadeiras da minha rua também não havia raparigas. O Damião de Góis em Alenquer era dirigido pelo Padre Zé, de quem me lembro simples num diminutivo que contrastava com a sua presença alta, de carácter pragmático, cuja bondade divina não se fazia sentir fora das aulas de religião e moral. Tive duas professoras no ensino primário. Talvez por ter sido a primeira, recordo a Maria Francisca com mais carinho do que a Maria Irene. Devo ter sido, nem sempre, um miúdo bem comportado porque não me tenho presente na ponta da cana da índia que repousava entre o quadro preto e os mapas do Portugal Administrativo, Insular e Ultramarino, mas lembro-me das vezes que tive dificuldade em subir para o estrado onde uma régua cega descia na palma da minha mão...

Voz e Dois Pianos

A idade trouxe-me pieguice emocionada. Apercebi-me disso quando a visão se me turvou por diversas vezes. A última vez que estive perto do Vitorino foi numa longínqua Festa do Avante. Sempre de boina preta, ontem de óculos escuros, vestia um casaco e umas calças do mesmo preto num desuso a que me habituei mas que aceitei por já não se fazerem cantadores assim. Os contadores de historias comuns estão a desaparecer porque nunca renunciaram à simplicidade. Mas também " porque já não há encontros como aqueles do café Expresso, que mais parecia uma carruagem de comboio porque tinha um balcão corrido, onde (ele) se sentava com o Herberto Hélder e outra gente que também não tinha importância nenhuma porque na verdade o que era importante foram as palavras que ficaram. Ou a do tocador de concertina do Redondo que tocava sempre com uma fotografia da namorada na parte detrás do instrumento e que, só por isso, merecia ser cantado ". Se há coisas que lamento na minha vida foi não ter vivi...