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A matança do porco dos meus avós

Sempre que vou a uma charcutaria fico a olhar os presuntos sem saber qual deles trazer. A maior parte das vezes apenas trago a ideia que nenhum se iguala ao sabor daquele que ainda guardo nas memórias de infância e que vinha sempre comigo quando visitava os meus avós.

Os meus avós paternos viviam perto do Louriçal num pequeno ajuntamento com menos de meia dúzia de casas e de acessos difíceis, dando jus ao nome de Casais de Além. Quando pequeno ia lá duas vezes por ano uma das quais para a matança do porco, sempre no rigoroso frio de Inverno para que as carnes não se estragassem na preparação. O meu pai aproveitava para lembrar da sua infância perdida, quando dali saiu para guardar ovelhas.

Não havia água canalizada nem luz eléctrica. Os únicos aquecimentos que ali conheci foi um cobertor de papa e uma manta de retalhos que me recolhiam à noite no colchão de palha, aconchegado no Oceano Pacífico que saia de um pequeno rádio Philips preto que colocava debaixo da almofada e que apenas se deixava abafar pelo som, mais alto, das horas certas do relógio de parede.

A matança do porco foi sempre um pretexto para a pequena família se reunir e se desafiar.
Logo pela manhã fazia-se sair o animal do curral para se habituar à cercadura exterior, onde o esperava uma refeição, a última da sua curta vida e que deveria acalmar o bicho para não entrar desconfiado e dificultar o sacrifício.
Enquanto as mulheres acendiam a fogueira, aqueciam as águas e preparavam os alguidares, os homens afiavam as facas e combinavam os preceitos para uma morte anunciada e que se queria rápida. A broa com manteiga, o calor da fogueira e o café com leite animavam os corpos para o frio.

Acabadas as buchas, os adultos, quentes, faziam-se ao ritual. O meu pai com a forquilha, o meu avô com a corda e o meu tio com o cebolão. Era sempre assim, sem direito a experiências novas. O processo consistia em prender as patas traseiras com a corda, deitar o animal ao chão, imobilizá-lo com o lado esquerdo para cima, colocar a forquilha entre as mandíbulas para ele não morder, levantar-lhe a mão esquerda e cravar o cebolão no coração, de uma só vez, certeira. Prender-lhe as patas era o mais difícil, depois tudo era rápido entre gritaria humana e grunhidos do animal. Eu ficava na cercadura e só me aproximava quando o cabo de madeira do cebolão deixava de anunciar as batidas da vida, a forquilha recolhia a seu lugar e a corda folgava.

Quando entrava em cena já a minha avó lá estava a ajeitar o alguidar para aparar o sangue que jorrava do pequeno buraco redondo que o cebolão deixava aberto, que depois de sangrado era cuidadosamente fechado com linha e agulha, a preceito, como se prega um botão, para que não se lhe visse a profundidade.

De seguida o porco era colocado a meia altura sobre uma prancha de madeira em cima de um carro de mão, para ser chamuscado em fogo de carqueja cujos estalos e cheiros me ficaram cravados apenas no tempo certo para que não queimassem a carne. Chamuscado procedia-se à raspagem dos pelos com uma telha de canudo. Para cima, para baixo, à força de braços. As patas levavam um reforço de calor para lhe retirarem as unhas que eram colocadas nas algibeiras de quem estivesse distraído.

O correr de água sobre o animal ia mostrando a limpeza do courato e a mudança de cor que a temperatura tornava castanho claro. Depois de liso e limpo era-lhe aberto os jarretes e colocado o chambaril de madeira. Levar o bicho para o anexo e pendurá-lo na trave era todo um processo de força e de jeito em passagens estreitas de portas à conta para o carro de mão que o encaminhava.

Suspenso, abria-se de cima para baixo, limpo de entranhas, carnes pobres e vazio de sangue, era-lhe colocado na pele da barriga dois bocados de caniço que obrigavam o animal a mostra-se por dentro. Tão igual a nós. O dia não acabava sem a minha mãe e a minha tia irem às boiças e regressar com as tripas lavadas no rio, transportadas à cabeça num alguidar de barro. A minha avó ficava em casa a deixar tudo preparado para a fervura dos interiores enquanto deixava derreter lentamente a banha dos torresmos e ia cozendo bolas de sangue misturado com farinha de milho, maiores e mais redondas que almondegas, numa panela de ferro fundido de três pernas, pendurada em cima do braseiro que nos aquecia, e que de imediato eram comidas cortadas em rodelas finas.

E o corpo do animal ali ao lado pendurado, aberto, à espera para ser desmanchado, arrefecia até ao dia seguinte metendo-se comigo e assaltando-me de medos durante a noite.

No dia seguinte havia festa e carne fresca grelhada ao almoço. Das melhores partes.

Uma das patas traseiras era colocada inteira, junto com outras carnes, numa arca de madeira elevada, tapada de sal e mantida numa cura cujo tempo nunca lhe aperfeiçoei. Sem pressas. Em dia preceituado era retirado, limpo em água morna e besuntado de banha, colorau e alho para afastar a mosca enquanto secava. Só depois de bem seco se cortava. Em nacos. Sem gula porque a abundância era contada. Comia-o com broa de milho que a minha avó cozia e lhe apurava o tal sabor especial que me condiciona desde aquela altura.


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